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Monday, November 28, 2011

A ANTROPOLOGIA DO TERCEIRO HOMEM



Talvez por saber o quanto custa estes dias trocar um hábito.
Ou quem sabe às expensas da cabeça encanecida,
sobre o poste da nuca acesa, feito imensa ampola incandescida.
Então senão por conta da ajuda pronta das desculpas que se conta
toda manhã para vencer o autodesprezo e despertar tão cedo.
Com tantos recursos desses ou nenhum deles,
ele ainda corre apressado ao ponto do lotação, de onde
as pernas frágeis prosseguirão transportando o mundo,
e não o mundo a ele – passageiro às avessas.
Não se irrita mais nem com os vespertinos temporais.
O guarda-chuva, o esqueceu num dia desses, mas não guarda indício
sequer de sua aparência, e há porventura mágoa de tudo daquilo
que é tão indistinto que só por esquecimento nosso aborreça?
No trânsito paciente retoma fôlego para prosseguir na marcha do dia,
que exibe os dentes e se promete inclemente na sua incipiente euforia.
E caso o seu passo vacilasse, por acaso alguém perceberia?
Sim, como quando alguém interrompe o fluxo da fila,
e impropérios irrompem menos contra traidor da pressa compartida,
do que contra a sua mãe, embora ironicamente já não esteja viva.
E essa olímpica indiferença dia a dia adquirida
quase o torna tangível como qualquer coisa.
Porque homens não, são criaturas angelicais, homens
não se tocam, furtam-se ao contato como negativamente imantados.
Por isso, se não consegue se fazer ver,
não é raro que de vez em quando outro corpo, apressado,
contra o seu trombe.
Se diz bom dia aos vizinhos é pura preguiça
de reajustar o percurso das manhãs quando secas.
Se dormita no ônibus ainda na ida é puro descuido,
ora, não que cansaço também não seja.
Se devora de um saco mais um naco de pão
ou se hábil engole enquanto o carro sacode
outro gole esquivo de água,
é que todo esforço, mesmo diminuto
poderá servir para, ao esquecer a vida sobre o banco,
recolher horas mais tarde a mirada
panorâmica do dia inteiro que disparou em branco
sem que se esforçasse em apanhá-la.
Crianças murmuram por moedas, o amanhã não espera.
Todo o esforço de todos concentrados no que tem de ser feito
e depois refeito, todos os minutos abortados pelo que não existe ainda,
e, tendo existido, já não tem sentido, outro vazio preenche a meta.
E que tolo se sente por somente agora haver percebido
que foi sempre no futuro que tínhamos vivido.
E se ele ao fim da jornada, ao calar de tantos gestos e desgestos, repousa
sobre a maciez da noite como a cã sobre a fronha,
talvez seja porque a noite que sonha
vaga e incomunicável como uma xícara
(estranho objeto de ausências),
sem mentir lhe prediga o achado de certa manhã,
não aquela que com as garras retesas amanhã o espera
impaciente como a mosca que beira o irresistível prato de resistência,
mas manhã em todo e para todos comum, mínima e amarela,
manhã há-de-haver-manhãs-mais-claras-e-mais-belas,
mas manhã que por não ser ainda, vive com sua centelha mínima,
e precisamente porque igual e nunca a mesma manhã
a todas as outras clarificasse.
E afeito à espera, atento como quem assistisse a um filme,
distingue da janela do veículo a imagem da imagem a repetir-se
sob a legenda dos dias inanes e sem nome de quem vivesse
a vida de outro homem.

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