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Sunday, January 8, 2012

SONETO DE NOME APAGADO



O teu nome eu escrevi na areia,
A onda do mar apagou... (canção popular)

Verba volant, scripta manent (dito romano)

Yo moría sin ella
y ella la vida me dió
(Pe. Anchieta)


Numa tarde de sol, sobre o solo abrasado,
O teu nome na areia deixei desenhado.
E mar e terra punham sua luta de lado
Para poder ouvir no ar o meu triste fado.

E enquanto havia luz sobre a praia baldia
Em que acaba o mar, como suor da terra ardente,
Crendo a letra pudesse emular o existente,
Do alto da pedra um nome lia-se: Maria.

Mas como se converte o momento presente
Sem qualquer solução em instante passado,
Arisca nos deixou a paixão: num repente.

O eterno só nos vê desde o tempo, Maria,
E foge, como o amor e o teu nome gravado
Que eram areia e a onda apagou no outro dia.

Wednesday, January 4, 2012

A PAIXÃO INIMITÁVEL



A neblina acautela os passos
e as boas almas dormem.
Eu não durmo nunca nem deixo
a Madalena dormir.

Prostrados, sentamos sobre a soleira
suja de um bar.
Meu olhar passeia sobre os seus lábios salientes,
um zigoma arrematado numa cicatriz esquerda.

Levanta, bora prosseguir as boléias de proletários,
acrescendo os nossos passos ao emaranhado
de pernas e carros que curvam essas ruas
doridas nos nossos sapatos cansados.

Peregrinemos ciosos de que a estrada
ao mesmo pó nos devolverá,
pois os rumos que fogem deste lugar
não demandam destinações mas emaranhamentos.

E não estranhe se nos perdermos neste labirinto involuntário.
Como não estranhe se nos entranharmos
neste mundo faminto de gente,
feito toda essa gente que copulula nele.

E, no entanto, no fundo das coisas,
onde também somos coisa,
não há desespero,
mas achamento e aparente paz,

paz pesada contra o caos de tudo isso:
paz no travesti adormecido sobre o banco da praça,
nas placas de trânsito retorcidas,
no cachorro atropelado, desviado para um meio-fio.

Paz nas crianças de rua dormidas sob capas de papelão.
Paz pesadelar de que não se sabe, de que não se pode,
de que não se quer
acord-

"Ah, meu Jesus!"
Ahn??
"Não, não você... (risos)
Noossa, que soninho! Jeeesus!

O ônibus passa agorinha...
Jesus... mas que nome o seu...
(meneio de cabeça e risos),
Madalena e Jesus, putz, que dupla a gente!"

Apenas nomes. A confluência de tantos outros nomes. Comuns
como livro, copo, cama.
Só Adão teve um nome próprio, porque era um.
Perder-se talvez seja a sina de quem ama.

Olhos se mergulham como escadas:
"A dona recebeu reclamações, os vizinhos
não gostam de mim
(abre a porta). É por aqui".

Cadeiras. Uma janela medrosa olha a rua de esguelha.
"Os nossos dedos juntos não contariam
(estende a mão mostrando os dedos)
em quantos quartos como esse eu já vivi”.

(...)
“O café vem cada vez menos bom, é pura cevada,
fiz ontem pra mamãe, não tinha gosto de nada,
a coitada nem podia tomar, teve gastrenterite...

É que eu sou meia arvoada".
(ruído de passos)
"O que se vê daqui?” (juntos à sacada)
“A pracinha. Cabeças.

Tantas cabeças que os nossos dedos
não conseguiam contar” (risos,
uma criança grande). Ela vem a mim,
e somos o que sempre fomos: somos todos desejo.

Há coisas demais neste mundo,
há homens demais neste mundo, e pés,
pés demais neste mundo.
Há também muitas línguas,

línguas de lamber, de falares,
línguas bífidas, cada vez menos lúcidas.
E há seios aos pares,
suaves e rumorosos como o motor a diesel.

Ah, também bocas,
de cuspir, de morder, de beijar,
cuspe e dentes e gengiva,
há tantas coisas neste mundo que talvez precise outro.

Amarra os meus braços abertos
contra as estacas da cama.
Suor descendo espesso como sangue
da nuca, das mãos, das têmporas.

Me amarra como um "T",
um "T" de tensões e tatos,
de tesões e olfatos.
Um "T" de êxtase.

A paixão nos arrebata de nós e ao chão nos arrasta.
Se enredam nossas sombras como cobras emaranhadas.
Sou uma só dor, as minhas, as tuas, as dores todas imbricadas.
Sou o suor, os odores, as roupas deitadas e não reclamadas.

Sou imenso como o grito com que me atiro
para além do próprio grito.
Sou o olhar com que me vejo alheio, à parte,
te sabendo o todo, não só metade,

pois na vida ínfima do outro
é que encontramos nossa íntima verdade,
feita de lapsos e de acasos
e de sal e sonho.
Abraçado a ela, quase ouço o passo do momento,
e ela dorme enganchada em mim. O dia quase aceso.
Todo dia e todo homem é um começo,
mas como ser começo, eu que só começo no fim?

Vem, vamos descer.
Quem sabe a padaria não abriu?
É demais tarde ou demasiado cedo,
e as almas inocentes ainda dormem.

Eu não durmo nunca
nem deixo a Madalena dormir.